pedaços de ti

Há uma hora do dia, no inverno, em que a luz da manhã atravessa a casa toda, desde o meu quarto até à cozinha. Será entre as nove e picos e as nove e picos. É tempo de deixar o sol e o ar entrar. Não creio que se veja nada do lado de lá, dos prédios em frente, mas nós vemos, mesmo que as janelas deles estejam fechadas, os hóspedes do hotel. É, instalaram o chuveiro dos quartos junto das janelas que dão para as traseiras. Ainda que o vidro seja fosco, vemos os seus corpos nus debaixo de água, a ensaboarem-se. Também ouvimos, à noite, o som dos tacos do bilhar a bater nas bolas, misturado com o rasto dos carros que passam a espaços na rodovia. Recorda-me o som que se ouvia na casa da tia Sílvia, em Guimarães, à noite. Devo ter ficado poucas vezes lá a dormir, talvez só uma até, mas não me esqueço desse som dos carros a passar – o que, para uma menina que vivia fora da cidade, era o som da civilidade. Já passou um mês. Achei que me devia permitir chorar-te, porque, na verdade, não conseguia deixar de pensar em ti a toda a hora. Ainda não consigo. Procurei-te por todo o lado, nas pedras da calçada, nas nuvens, e nos sons que deixaste. Ver-te em fotografias e ouvir-te faz-me bem. Ou não. Não sei. Sei que passou um mês, não porque o sinta, mas porque o diz o calendário e o correr dos dias. Ontem fui almoçar com a minha mãe à Centésima, a Ana apareceu e a tua mãe não quis ir. Está à espera dum sinal. Estivemos ao sol, no jardim onde leste Botto para a câmara e apareceu um gato preto, fofo, lindo. Fotografamos, gravamos o som que se ouvia lá, dos pintainhos do vizinho, de um outro pássaro mais tímido, do sino dos Congregados. Ou melhor, tentamos, porque a câmara do telefone ficou louca e a produzir imagens estranhas, movediças, e o som duma bobine a passar um filme em película! Não sei porquê nem para quê, porque não tos posso mandar. Está a chegar a data dos teus anos e não ta posso enviar, como fazíamos – uma fotografia da data impressa na validade de uma qualquer embalagem. Na procura dos pequenos tus que semeaste na internet, encontrei o teu museu das datas expiradas. Tantos pedaços de ti que deixaste por aí… contudo, tão poucos… Ontem faria anos Virginia Wolf. Ter-te-ás já encontrado com ela? Espero que a doce Laila te tenha procurado e que consigas ler estas mensagens para ti.

na Centésima, 25 Jan. 2023.
 



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